No ano em que se completam 45 anos do 1º estágio dirigido por Mestre Murakami em Portugal, que hoje consideramos data de nascimento do Shotokai no nosso país, não podíamos deixar de assinalar
a efeméride, incluindo no nosso estágio, que se está a realizar esta semana, um espaço destinado à comemoração desse evento.
Assim, dadas as limitações do nosso grupo, resolvemos não fazer cerimónias empoladas e organizar um bate-papo onde, descontraidamente, cada um possa pôr as questões e fazer as observações que desejar.
Pensamos que esse passado é importante, pois constitui a nossa memória colectiva e mostra os comportamentos de todos os intervenientes no processo. O pior é que cada um, com maior ou menor distorção e/ou subjectivismo, conta a coisa à sua maneira, e várias pessoas me têm pressionado a fim de que eu, como testemunha e participante dos factos, escrevesse as minhas memórias, que actuariam como contraditório do que já se tem dito e, nalguns casos, mentido sobre o assunto.
Não me julgo suficientemente importante para escrever memórias, e não pretendo de maneira alguma gerar polémicas e, por isso, acedi a fazer o relato de alguns episódios marcantes, na história do Karate em geral e do Shotokai em Portugal como simples descrições do que que foi a evolução dos acontecimentos, tal como eu os vivi, tentando ser o mais objectivo possível.
Começando pelo princípio...
O Primeiro estágio de Mestre Muarakami
Já todos sabem que o karate começou a ser praticado em 1964, num dojo situado na rua de Entrecampos, chamado Academia de Budo, que era propriedade de um cidadão chamado Correia Pereira, que terá sido o primeiro cinto negro 1º Dan de judo no nosso país. A pessoa que geria o dojo era o Dr. Pires Martins que, na altura em que me inscrevi, dirigia as aulas de judo, dito “marcial”, ou seja, não limitado pelas regras que a competição desportiva impõe. Dois ou três meses mais tarde, aparecem no dojo o Manuel Ceia e o Raul Cerveira, que viriam a protagonizar diversas etapas da história das artes marciais.
Em data posterior, que não sei precisar, ingressa também na Academia, o A. Gueifão, que vinha do Judo Clube de Portugal.
Alguns meses mais tarde, o Dr. Pires Martins resolve começar a introduzir noções básicas de karate (a sua ideia era a de que, como os antigos samurais no Japão, um praticante de Budo deveria praticar todas as artes militares possíveis e, para o efeito, a graduação mais elevada que ele atribuía a qualquer praticante numa dada disciplina era válida para qualquer das outras).
O Dr. Pires Martins é, reconhecidamente, considerado o introdutor do karate em Portugal, ou, pelo menos, em Lisboa, mercê do seu entusiasmo e do seu trabalho de divulgação daquela arte.
Os meses foram passando e o Dr. P. Martins, que tentava aprender e transmitir as técnicas básicas de karate, estudando, numa visionadora de montagem, os filmes de 8 milímetros da Japan Karate Association, assim como num livro do Nishyama Sensei (Karate-Do) cedo assumiu, com humildade assinalável e visão lúcida, a transmissão da condução das aulas a dois dos mais avançados praticantes que estavam disponíveis para a tarefa, o Ceia para o Karate e o Raul Cerveira para o Judo. A partir daí, passou a haver aulas separadas das duas disciplinas, tendo o Dr. P. Martins começado a ensinar defesa pessoal. Entretanto, o R. Cerveira vai fazer o serviço militar, e posteriormente vai para África, e o M. Ceia, para evitar sorte idêntica, emigra para França. O Dr. P. Martins, pergunta- me se estou disposto a tomar o lugar do Ceia. Eu que, tendo começado a praticar pelo prazer da prática, nunca tinha encarado essa hipótese, e nessa altura já praticava todos os dias, lá fui convencido pelo Dr. e acabei por aceitar, tendo de seguida tido a grande surpresa de saber que iria ser remunerado pela tarefa, se bem me lembro, à razão de E pelo seu assistente Michel Hsu, um excelente executante, na altura 2º Dan. Fiquei convencido e trocámos correspondência sobre a possibilidade do Mestre vir a Lisboa fazer um estágio. Entretanto, o Dr. P. Martins, que as minhas insistências finalmente tinham convencido da necessidade de organizar um estágio com um mestre japonês, tinha obtido os honorários e despesas decorrentes da viagem e estadia do Mestre Kase: (as importâncias podem não estar completamente correctas, mas as proporções foram respeitadas):
sc. 64,00 por mês.
Tive a sorte de entre os meus primeiros alunos, haver um largo punhado de jovens, dotados e empenhados, cerca de 15, que constituíam o núcleo forte do grupo, entre os quais Vilaça Pinto, Almeida e Cunha, Pereira, Frade, Afonso L Vieira, Custódio e outros dos quais, embora os tenha presentes na memória, esqueci os nomes, que mais tarde vieram a ser dirigentes dos vários grupos de karate que se foram formando. Em 1967, fui a Paris, onde queria frequentar um estágio por um mestre japonês da JKA que se iria realizar na AFAM (Académie Française des Arts Martiaux), que era propriedade de um senhor chamado Henri Plée. O Ceia tinha feito o estágio no ano anterior, com um jovem japonês chamado Nambu, mas não pode fazer o do Mestre Kase, penso que por razões financeiras. No entanto assistiu aos treinos do estágio em que eu participei, em que quase todos os praticantes eram de baixo nível. Este facto justifica as palavras do Ceia “ Aparte o Lavorato (Membro da equipa nacional francesa, à época), tu és o único que se safa. O resto dessa malta não vale nada”.
Isso valeu-me também a atenção especial do Sr. H. Plée, que não acreditava que eu não tinha tido professor e, na primeira ocasião, castigou-me por o meu cinto se ter desatado e caido no chão. Também notei, pelo canto do olho, que o Mestre Kase me olhava de soslaio, talvez surpreendido pelo facto de eu ser o único a executar os kata's tal e qual como ele os ensinava. Mal sabia ele que eu tinha tido os melhores professores da JKA, incluindo ele próprio, na visionadora de montagem que ja tinha sido utilizada pelo Dr. Martins e pelo Ceia!
Em 1968, voltei a Paris, juntamente com alguns dos meus alunos, com a intenção de fazermos o estágio do M. Kase. Tivemos a desilusão de sermos surpreendidos pela notícia de o estágio não se realizar em Paris, mas sim numa praia do norte de França. Os meus alunos resolveram ir para norte para fazer o estágio. Eu resolvi ficar em Paris onde, na companhia do Ceia, visitámos alguns dojo's, cuja actividade, na área do karate, deixava muito a desejar. Até que...Um dia recebo uma carta do Ceia, em que ele me diz que tinha encontrado um dojo, onde leccionava um japonês, cujo trabalho lhe pareceu sério e bom. “Pela primeira vez senti o que era o zenkutsu!” escreveu ele. Combinámos encontrarmo-nos quando voltasse a Paris para eu ir experimentar uma aula do Mestre Murakami. Este não se encontrava em Paris, nessa ocasião e a aula foi dirigida pelo seu assistente Michel Hsu, um excelente executante, na altura 2º Dan. Fiquei convencido e trocámos correspondência sobre a possibilidade do Mestre vir a Lisboa fazer um estágio. Entretanto, o Dr. P. Martins, que as minhas insistências finalmente tinham convencido da necessidade de organizar um estágio com um mestre japonês, tinha obtido os honorários e despesas decorrentes da viagem e estadia do Mestre Kase: (as importâncias podem não estar completamente correctas, mas as proporções foram respeitadas):
Mestre Kase
Uma semana:
Honorários: Esc. 14 000 (€ 70)
Custo da viagem (para ele, mulher e filha)
Seguro : (para ele , mulher e filha)
Mestre Murakami
2 semanas :
Duas semanas
Honorários : Esc. 14 000 (€ 70 )
Estadia: Casa do Dr. Pires Martins
O Ceia, entretanto, tratava dos pormenores com o Dr. Martins e, passado algum tempo, o estágio era anunciado:
Custo: Esc. 1 000. Um preço relativamente elevado.
Não existem, tanto quanto eu saiba, fotos deste estágio. Apenas recordo alguns pontos que me parecem ser determinantes para compreender a sequência dos acontecimentos.
1)Os meus alunos receberam as minhas explicações e a minha decisão de mudar o tipo de treino com relutância (até aí, tínhamos seguido o estilo Shotokan da JKA) A eliminação do chamado “combate livre”,“jyu-kumite” dos treinos não foi aceite.
2)Um poderoso factor de desestabilização, personificado por um 1º Dan sul-africano Ronald Clarck, que eu tinha convencido (com algum esforço) o Dr. Pires Martins a substituir-me na orientação das aulas. Esse sul-africano vivia perto de mim, na Parede, e fazíamos muitas vezes a viagem até à Academia de Budo, de manhã cedo, o que me permitiu conhecer mais profundamente o seu carácter. Mas isso ficará para um dos episódios futuros.
Interessa apenas dizer que depois do estágio do Mestre Murakami, todos eles continuaram no estilo JKA e eu mudei para o método Murakami. Pudera!: 2 semanas a fazer gedan-barai, mae-geri lento, com a perna esticada, ippon-kumite e nem sombra de combate livre!
Durante o estágio, tive a treinar ao meu lado um 4º Dan japonês (Miyazaki) que vivia na Bélgica, que, para minha satisfação, não aguentava a perna esticada na horizontal, no treino de mae-geri. Tinha vindo da Bélgica de propósito, penso eu, convidado pelo Clarck para acabar de aliciar os praticantes na via da JKA e da competição.
Numa das noites jantámos em casa do Dr. P. Martins, onde o Miyazaki se desdobrava em vénias ao Mestre Murakami, exclamando contínuos “Hooss!”. No final, levei-o ao Hotel, e, no meio da rua, tentou, a meu pedido, explicar-me o significado daquele ritual. Já um pouco “topsy-turvy” (os japoneses, aguentam muito pouco o álcool) lá foi, atrapalhando o tráfego, fazendo vénias e gritando “Hooss!”, que eu tentava retribuir.
Numa das aulas, a pedido do Mestre, Miyazaki executou um kata, o Hangetsu. No final da execução, o Mestre, que estava a meu lado, susurrou-me: “Vous voyez! C'est toujours laid comme ça!” “Está a ver? É sempre assim, feio!”
Assim decorreu o 1º estágio do Mestre Murakami em Portugal. Gedan-barai, técnicas de base, para eliminar erros adquiridos, kata's básicos.
E, no final, disse:
“Agora trabalham isto durante um ano e, se quiserem, convidam-me outra vez!
Mário Sacadura Rebola
Recordando o passado Ep. I
Nihon Karate Do Shoto Kai
(Membro oficial)