Uma personagem que teve um determinado papel nos acontecimentos que rodearam o 1º.estágio do Mestre Murakami foi um sul-africano que veio fazer um estágio, ou qualquer outra tarefa relacionada com o seu emprego, na empresa Standard Eléctrica.

Apareceu em cena, durante uma das minhas aulas, na Academia de Budo. Identificou-se como 1º. Dan da JKS (Japan Karate-Do Shotokan) , o mesmo estilo cujas técnicas e kata's nos esforçávamos por seguir, por meio dos célebres filmes de 8 milímetros e da respectiva visionadora de montagem de que já falámos no Episódio I.
Disse que gostaria de treinar e, se possível, dar aulas, que fazia competição e tinha um dojo na África do Sul.
Era um indivíduo forte, alto, maciço, mas ágil. Fizemos um pouco de kumite, e verifiquei que tinha prática de combate de competição.

Nessa altura estávamos ainda longe de ouvir falar do Mestre Murakami e pensei que Mr. Ronald Clark (era assim que se chamava) poderia ser de alguma utilidade se nos transmitisse a sua experiência de combate. Imediatamente contactei o Dr. Pires Martins, pedindo-lhe que me substituísse na orientação dos treinos pelo sul-africano. O Dr. não concordava com a ideia, porque, disse ele, o sujeito não lhe inspirava confiança, mas, depois de insistências minhas, interessado que estava em conhecer novos treinos e novas experiências, acabou por ceder.
A partir daí, começa a desenhar-se a verdadeira natureza de Mr. Clark. Eu tinha algum relacionamento com ele, porque, além do facto de eu também trabalhar numa empresa sul-africana (South African Airways), éramos quase vizinhos, ele e a mulher moravam na Parede e eu em Carcavelos. Quando havia treinos de manhã, antes do emprego, partilhávamos o transporte de casa para a Academia, e, durante a viagem, ele punha a nu os seus projectos e aspirações. Considerava ridículo o que recebia da Academia e o seu sonho era ser contratado para dar aulas em organismos como a Polícia, a GNR, ou outros organismos afins, onde com certeza seria bem pago.

Entretanto, ia organizando as coisas segundo as suas comodidades.
Tentando fazer-nos passar por idiotas, decretou que as 3 aulas semanais teriam lugar às segundas, terças e quartas, em vez de estarem distribuídas por toda a semana, porque, “explicou” ele, esta metodologia era mais produtiva em termos de aprendizagem e desenvolvimento físico! O que ele não disse, mas era evidente, é que ela era também muito conveniente para o Mr. Clark, que assim ficava com quatro dias ininterruptos de “folga”, em detrimento dos praticantes, que ficavam sem o descanso necessário no intervalo dos treinos e com descanso a mais nos restantes dias.
Este crescendo de atitudes negativas foi cavando um fosso entre nós dois, agravado por um episódio acontecido numa fase de um treino em estávamos a fazer ju-kumite (combate livre).

Ao tentar repetir uma técnica (ushiro-geri), com que me tinha atingido, foi surpreendido pela minha antecipação que o fez cair com um certo aparato e me colocou definitivamente na sua lista de personae non gratae.
Entre os praticantes que treinavam na Academia, havia um, chamado J. P. Simões, que se incluía no grupo dos que demonstravam um interesse e uma disponibilidade acima da média pelo karate.
J. P. S. foi meu companheiro de treinos, durante bastante tempo, tendo sido nomeado instrutor do curso de principiantes pelo Dr. Pires Martins(1[1]). Na Academia, isso funcionava como promoção imediata a cinto negro, pois o Dr., com inteligente visão de marketing, estava convencido, e com razão, de que o instrutor necessitava de um ascendente, um certo domínio, sobre os seus alunos e, quer tivesse ou não outros meios de o obter, o cinto negro era, psicologicamente, a varinha mágica que transforma o manga-de-alpaca em super-herói. Eu próprio, com a graduação de 1º. Kyu, fui graduado em 1º Dan quando comecei a dar aulas,. E como eu, o Manuel Ceia e o Raul Cerveira. Mais tarde, pude constatar que o nosso nível técnico podia ombrear, sem grandes preocupações, com o das graduações existentes no estrangeiro, nomeadamente em França, ou das de praticantes que nos visitavam.
Mantivemos, eu e J. P. S., durante o tempo em que vivi em Carcavelos, (ele e a esposa também moravam na Parede), relações de amizade, reforçadas tanto pela prática das artes marciais japonesas, como pelos ideais e valores humanistas que ambos professávamos.

A determinada altura, depois do 1º estágio do Mestre Murakami, já o R. Clark tinha saído com os praticantes que decidiram continuar a via da competição, e estando a ligação com o Mestre Murakami periclitante devido à indecisão do Dr. P. Martins, resolvi sair da Academia e fundar outro dojo.
Para isso, era necessário fazer um pedido por escrito à entidade que tutelava a prática das artes marciais, que era a União Portuguesa de Budo (UBU), da qual, nessa altura, já eu integrava um dos órgãos gerentes. A UBU era, à época, um grupo fechado, cujos membros, além do Dr. P. Martins, quase ninguém conhecia, cujo hermetismo e cuja perenidade dos órgãos directivos e respectiva (in)actividade começaram a ser contestados por alguns dos meus alunos. A minha nomeação era, em grande parte, uma operação de cosmética para demonstrar uma “abertura” que não convenceu ninguém e não teve consequências, pois não houve sequer uma simples reunião para mostrar que o grupo estava vivo e activo.
Com a vantagem que me dava a nova posição, e a relação amistosa e civilizada que sempre mantive com o Dr. P. Martins, facilmente me seria concedida a autorização para abrir um dojo. Tendo combinado com o J. P. Simões fundar o dojo e feito projectos sobre o seu funcionamento e o seu sucesso, de um modo desinteressado (leia-se “pateta”),fiz o pedido com o nome dele.
Entretanto, os meus antigos alunos, sempre liderados por Mr. Clark, continuavam cada vez mais activos na procura de um caminho em que se pudessem afirmar, tendo estabelecido contactos e ligações com a JKA, através do Sensei Miyazaki, que residia então na Bélgica.
Depois do estágio do Mestre Murakami, organizaram um estágio com um instrutor chamado, se não me engano, Sato, estágio esse que foi assistido por um dos alunos do Mestre Murakami que hoje mais reclamam a fidelidade e a ligação eterna e indestrutível que sempre lhe tributaram, e que, na altura, logo depois do estágio, no átrio da Academia de Budo, proclamava, em tom comicieiro: “Qual Murakami, qual quê! Vocês haviam de ver o Yoko-tobi-geri do Sato â cara do Pereirinha!”

Mas voltemos ao nosso relato.
Instalada a clivagem, seguiu-se um período algo alvoroçado, em que a liderança dos ex-alunos da Academia desenvolve uma grande actividade de divulgação, nos jornais e na televisão, em que a pedra de toque era a diferença entre o verdadeiro karate (o deles) e o do Mestre Murakami, que foi comparado a um ballet. Eu era a única excepção, salvo pelo meu passado!
Outro cavalo de batalha, dentre os vários “argumentos” utilizados pelos porta-vozes tinha a ver com o facto, segundo eles, de todas as graduações que eu tinha dado serem erradas e inflacionadas, tendo o Mr. Clark corrigido o erro, substituindo-as por outras, desta vez, seguramente, certas e deflacionadas.
Tratava-se das graduações de cinto castanho (2º e 1º Kyu , talvez para uma dezena de praticantes, aproximadamente, e uma graduação de cinto negro (1º Dan), a do José Paulo Simões.
Ora, já vimos mais acima como eram dadas, e por quem, as graduações de cinto negro. Além de que, se tivesse a cabeça fria, o Mr. Clark ter-se-ia lembrado que eu nunca poderia ter dado uma graduação de Dan, já que eu próprio só possuía esse grau.
Quanto às graduações de 1º e 2º Kyu, todas elas foram mantidas, à excepção da de Luís Almeida e Cunha, que viu o seu 1º Kyu ser “despromovido” para 2º. Fica-se a pensar se não foi ele o bode expiatório para justificar a campanha…

Num estágio dirigido por Mr. Clark, a que eu assisti, realizado na Parede, nas instalações do que viria a ser a Sede do Centro Português de Karate, , fui, no intervalo do treino, abordado pelo Mr. Clark, que , com ar façanhudo e semblante carregado, me disse, mais ou menos, o seguinte, em jeito de pedido de explicações:
“O Senhor anda a dizer por aí, sem ter capacidade para prová-lo, que o nosso tipo de treino não tem técnica nenhuma porque só fazemos combate livre,! ”
De facto, lembrava-me de ter dito uma coisa parecida, ao comentar o estágio com o meu amigo J. P. Simões. E tive a confirmação logo a seguir: Visivelmente comprometido, este é chamado à cena e, de olhos no chão, confirma que me ouviu dizer tal barbaridade!

Passado um primeiro momento em que procurei digerir o melhor que pude o verdadeiro murro no estômago que foi esta surpresa de ver o meu amigo denunciar-me, ainda por cima sem pré-aviso, passei a responder ao meu interpelador, talvez com alguma veemência acrescida, por me sentir logrado sem conseguir descortinar razões para o merecer.
“Look, man! O que eu disse, e continuarei a dizer, é que treino de combate de competição em demasia é prejudicial para a execução técnica e para o kata.
Deixei o vocativo da frase em inglês por me lembrar de que, logo após o incidente, o Fragoso Fernandes, praticante vindo do body building, possuidor de um particular sentido de humor, veio ter comigo e disse-me que eu tinha sido mal-educado para com o sul-africano com aquele “Look, man!”.
Depois de uma troca de invectivas entre mim e um ou outro componente do pequeno grupo que me rodeava, a tensão pareceu ter-se diluído com a minha resposta ao Çlark. Depois de alguns momentos em que auscultei as vibrações que pairavam no ambiente, e assegurando-me de que tudo estava voltando à rotina, retirei-me e, no regresso a casa, pus-me a matutar no que acabara de acontecer e a medir a extensão dos estragos:

Perda de um grupo de jovens, grande parte dos quais excepcionalmente dotados, que eu tinha entusiasmado pelo karate, e “a quem ensinei o oi-zuki”, para usar uma expressão  de um deles.
Obtenção de uma autorização de abertura de um dojo que é passada, como já expliquei, com o nome do J. P. Simões, como 1º requerente e que ele foi oferecer aos dirigentes do Centro Português de Karate, que assim legalizaram a sua situação perante as autoridades.
Nem uma palavra, ou explicação, ou justificação para o acto. Ainda hoje, penso que deve haver uma causa, por mais subjectiva que seja, que justifique o acontecido, porque é difícil aceitar que tenha sido uma acção gratuita, e pergunto-me se terei agido de maneira menos correcta em alguma circunstância, que originasse sentimentos de vingança, mas não consigo encontrar nada consistente

E foi este o episódio que tive vontade de relembrar. Talvez seja avisado dizer que são acontecimentos com mais de meio século de existência e a memória pode pregar-nos partidas. Há, no entanto, uma regra que para mim funciona sempre: assegurar-me de que as consequências dos factos correspondem à verdade e partir daí para construir um caminho lógico, construído com os retalhos guardados na memória, correspondentes a esse caminho.

Resta dizer que, dos meus antigos alunos, uns formaram associações de que foram (ou são) dirigentes, (Luis Cunha, Custódio, Carlos Pereira, Frade e Vilaça Pinto que, depois de ter ido para o Japão, juntamente com Afonso Lopes Vieira, onde praticaram durante alguns anos, regressa e funda também a sua associação.
Outros, lamentavelmente, deixaram de praticar.
De Ronald Clark nunca mais ouvi falar.
Estes acontecimentos tiveram lugar em 1969, ano em que, no mês de Agosto, se realizou o 1º estágio do Mestre Murakami em Portugal, frequentado por 15 praticantes que, no final, abandonaram a Academia na sua quase totalidade.

Sem preocupações de ordem cronológica, pois poderei voltar a acontecimentos anteriores, vamos entrar na época Shotokai, com o 2º estágio da Academia de Budo, antecedido pelo de Sérignan-Plage, ambos frequentados já pelo José Pascoalinho e tendo o de Sérignan contado com a participação de 4 portugueses Manuel Ceia, José Pascoalinho, Fernando Neto, que vive em Paris, e eu próprio.

Mário Sacadura Rebola
07-12-2014


[1] Não estou seguro de que J. P. S. tenha sido instrutor das aulas de  principiantes, mas se não foi esta a justificação do Dr. Martins para a concessão da graduação, foi outra da mesma natureza.
Recordando o passado Ep. II - O Sul-Africano Ronald Clark
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